Essa estória fiquei conhecendo pela minha maninha Guiomar.
O Sá descobriu que no China da Riachuelo, perto dos Arcos, servia-se aos domingos por preço de banana um prato que se chamava, sem rodeios, frango com arroz.
E era verdade. Esse prato restaurou em nós a perdida dignidade dos domingos de outrora, iluminados sempre por uma galinha-ao-molho-pardo ou um frango-com-farofa-de-miúdos...
Era com outra alma que a gente agora lia os suplementos dominicais, almoçava média com pão e manteiga, e esperava a noite.
Sim, porque o frango era servido precisamente às sete horas da noite.
E a freguesia, naturalmente, era grande.
A partir das 6 e meia começava a chegar o pessoal que, como quem não quer nada, espiava para as mesas e ficava por ali - pois o frango era pouco e ninguém queria correr o risco de degradar seu domingo. Às 7 em ponto, o garçom anunciava:
- Atenção, pessoal, vai sair o tite!
Seguia-se o rebuliço das últimas disputas e arranjos: "Dá licença de botar uma cadeira a mais na sua mesa?" "Mas já tem cinco."
"Se não, vou perder o frango..." "Deixa o rapaz sentar."
E lá vinha, em pratos feitos que fumegavam por cima de nossa cabeça, na bandeja do Jacinto, o frango com arroz, vendido inexplicavelmente por cinco pratas.
Também, quinze minutos depois, quando mal acabávamos de devorar o último farelo do frango, já se ouvia, irônica, a voz do garçom:
- Acabou o tite! Agora só sopa de entulho!
O "tite "... Por que "tite"? Aquele domingo saí com essa pergunta na cabeça.
O Jacinto não dizia "vai sair o frango", dizia "vai sair o tite"...
Manifestei minha estranheza aos companheiros de quarto e o Sá, que lia Novos Rumos, retrucou com desprezo:
- Curiosidade pequeno-burguesa. Vê se algum operário, podendo comer frango por cinco pratas, vai-se preocupar com a gíria do garçom!
O Sá tinha razão. Tratei de esquecer o problema e fomos, mais uma vez, ao frango do China, ao tite com arroz.
Mas eu vivia os meus últimos domingos de glória, pois, pouco mais tarde, deparei com o Jacinto tomando hidrolitol, no Largo da Lapa, e não resisti.
- Tite é o seguinte - explicou-me ele. - O senhor Shio, dono do restaurante, faz as compras da semana todo domingo na feira do Largo da Glória.
Os frangos e galinhas são trazidos em engradados, se machucam na viagem e alguns chegam na feira morre-não-morre.
O senhor Shio, sabendo disso, vai logo perguntando pros feirantes: "Tem galinha tite?
-Tem galinha tite?"
E assim - continuou Jacinto - compra tudo o que é galinha triste que há na feira. Umas estão apenas tristes, outras já morreram de tristeza, mas o chinês compra assim mesmo.
E justifica: "Vai moler mesmo!"
- disse Jacinto, soltando uma gargalhada.
Eu ri também, mas sem achar a mesma graça
Ferreira Gullar
O Sá descobriu que no China da Riachuelo, perto dos Arcos, servia-se aos domingos por preço de banana um prato que se chamava, sem rodeios, frango com arroz.
E era verdade. Esse prato restaurou em nós a perdida dignidade dos domingos de outrora, iluminados sempre por uma galinha-ao-molho-pardo ou um frango-com-farofa-de-miúdos...
Era com outra alma que a gente agora lia os suplementos dominicais, almoçava média com pão e manteiga, e esperava a noite.
Sim, porque o frango era servido precisamente às sete horas da noite.
E a freguesia, naturalmente, era grande.
A partir das 6 e meia começava a chegar o pessoal que, como quem não quer nada, espiava para as mesas e ficava por ali - pois o frango era pouco e ninguém queria correr o risco de degradar seu domingo. Às 7 em ponto, o garçom anunciava:
- Atenção, pessoal, vai sair o tite!
Seguia-se o rebuliço das últimas disputas e arranjos: "Dá licença de botar uma cadeira a mais na sua mesa?" "Mas já tem cinco."
"Se não, vou perder o frango..." "Deixa o rapaz sentar."
E lá vinha, em pratos feitos que fumegavam por cima de nossa cabeça, na bandeja do Jacinto, o frango com arroz, vendido inexplicavelmente por cinco pratas.
Também, quinze minutos depois, quando mal acabávamos de devorar o último farelo do frango, já se ouvia, irônica, a voz do garçom:
- Acabou o tite! Agora só sopa de entulho!
O "tite "... Por que "tite"? Aquele domingo saí com essa pergunta na cabeça.
O Jacinto não dizia "vai sair o frango", dizia "vai sair o tite"...
Manifestei minha estranheza aos companheiros de quarto e o Sá, que lia Novos Rumos, retrucou com desprezo:
- Curiosidade pequeno-burguesa. Vê se algum operário, podendo comer frango por cinco pratas, vai-se preocupar com a gíria do garçom!
O Sá tinha razão. Tratei de esquecer o problema e fomos, mais uma vez, ao frango do China, ao tite com arroz.
Mas eu vivia os meus últimos domingos de glória, pois, pouco mais tarde, deparei com o Jacinto tomando hidrolitol, no Largo da Lapa, e não resisti.
- Tite é o seguinte - explicou-me ele. - O senhor Shio, dono do restaurante, faz as compras da semana todo domingo na feira do Largo da Glória.
Os frangos e galinhas são trazidos em engradados, se machucam na viagem e alguns chegam na feira morre-não-morre.
O senhor Shio, sabendo disso, vai logo perguntando pros feirantes: "Tem galinha tite?
-Tem galinha tite?"
E assim - continuou Jacinto - compra tudo o que é galinha triste que há na feira. Umas estão apenas tristes, outras já morreram de tristeza, mas o chinês compra assim mesmo.
E justifica: "Vai moler mesmo!"
- disse Jacinto, soltando uma gargalhada.
Eu ri também, mas sem achar a mesma graça
Ferreira Gullar
Um comentário:
Crônica inesquecível!! Li há muitos anos e amei reler agora! Impossível não rir muito!
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